
Aviso: Não contém spoilers
O programa de Física exigido pelos vestibulares das principais universidades públicas do país é insano. Para dar um exemplo a Fuvest em 2020 exige 59 tópicos distribuídos em 13 diferentes áreas da Física. Apesar de tanta exigência temas como Abordagens conceituais da Teoria da Relatividade e discussões sobre a natureza do tempo não fazem parte do programa. É fácil entender porque a maioria dos colégios particulares não incluem esses temas tão importantes e intrigantes, infelizmente se deixam levar pelas exigências dos vestibulares. Fica a critério dos professores de Física abrirem em suas aulas algum momento para que essas discussões, que sempre motivam a maioria dos alunos, sejam abordadas.
Do meu ponto de vista há uma inversão de valores. O atual BNCC (Base Nacional Comum Curricular) permite, e mesmo o anterior PCN (Parâmetros Curriculares Nacionais) também permitia, a inclusão dos temas referentes a Física Moderna como a discussão sobre a natureza do tempo. Mas as escolas preferem seguir a exigência do vestibular quando deveria ser o contrário, os vestibulares é que deveriam cobrar o que as escolas estão trabalhando.
Felizmente trabalho há mais de 20 anos em uma escola que permite essa abordagem, como parte do programa e não apenas em algumas aulas. Faço isso em uma disciplina eletiva e até mesmo no Plano de Ensino do Curso de Física. No último trimestre do 3 ano do ensino médio discutimos as mudanças conceituais trazidas pela Teoria da Relatividade e da Mecânica Quântica. Como a discussão é feita apenas de forma conceitual, sem a matemática envolvida nessas novas teorias, faço uso de vários textos, livros, filmes e séries.
E foi através de um aluno do ensino médio em 2018 (o querido Mathias) que fiquei conhecendo a série alemã: Dark criada por Baran bo Odar e Jantje Friese e transmitida pela Netflix. Assisti à primeira temporada em 2018 e tive que rever em 2019 antes de assistir à segunda temporada pois não me lembrava perfeitamente da trama e principalmente devido às complexas árvores genealógicas (a série me fez lembrar do livro: Cem anos de solidão de Gabriel García Márquez, eu ficava perdido na árvore genealógica pois há vários Antônios em uma mesma família). A Wikipédia classifica Dark como uma série de drama, suspense e ficção científica, classificação essa que não quer dizer muita coisa.
Vou dividir esse post em mais de uma parte pois ainda não acabei de assistir à terceira temporada (por favor não dê spoilers nos comentários), peço então um pouco de paciência por isso, mas tem muita coisa a ser dita sobre a série não apenas sobre os conceitos físicos, mas também a relação com outras séries e filmes, como Lost, Interestelar, De volta para o futuro, Donnie Darko, etc. Vou começar pelas questões físicas da viagem no tempo, mas depois quero falar sobre os paralelos com essas obras.
Não vou me atrever a comentar os detalhes cinematográficos da série pois não tenho competência para isso e nem quero fazer julgamento de valor do ponto de vista científico (isso está errado, isto está certo) pois acredito que isso não se aplica a nenhuma obra artística. Acho incrível quando temas da Ciência e principalmente da Física são usados para obras artísticas, mas isso não quer dizer que elas tenham que ser exatas, servem geralmente como inspiração.
Há casos onde especialistas são chamados para uma consultoria ou até mesmo auxiliam na construção do roteiro. Nesse caso deseja-se uma maior fidelidade com os conceitos para que um maior realismo seja conseguido, mas não podemos esquecer que se trata de uma obra de ficção, e do meu ponto de vista a criatividade deve estar acima da exatidão, afinal de contas “o que é a Realidade?” , isso já dá uma boa discussão filosófica.
Minha intenção aqui é bater um papo com quem está acompanhando a série e aproveitar para falar um pouco sobre como a Física enxerga algumas questões apresentadas na série e mostrar como algumas coisas que aparentemente consideramos chatas quando estudamos na escola, podem ser incríveis ao serem vistas de outra forma.
Viagem no tempo

Diferente de muitas histórias onde ocorrem viagens no tempo para se mudar alguma coisa do passado ou para se saber algo do futuro, a história de Dark é toda construída sobre os laços temporais e as consequências de se viver em uma linha de mundo em looping.
A Teoria da Relatividade Restrita que Albert Einstein publicou em 1905 já deixa claro que o tempo não passa igual para todo mundo. Observadores que estão em diferentes referenciais sentirão diferentemente a passagem do tempo. Mas para que a percepção seja significativa, seria necessário que um dos observadores estivesse viajando a velocidades ainda inimagináveis para corpos do tamanho do nosso. Algo em torno de 10% da velocidade da luz no vácuo (cerca de 30 mil km/s ou 108.000.000 km/h). Além disso trata-se de uma viagem apenas para o futuro, sem a possibilidade de ir ao passado, seria como se alguém que está em altíssima velocidade ficasse quase congelado, o tempo passa devagar se comparado com alguém que está em repouso na Terra.
Mas em 1916 Einstein publica a Teoria da Relatividade Geral. Essa teoria consegue incorporar a gravidade em seu escopo e com isso generaliza as alterações no espaço-tempo. Assim estar próximos de corpos extremamente massivos (como buracos negros) também provoca uma redução no ritmo de passagem do tempo. Além disso a teoria permite, ainda que seja apenas matematicamente, a existência de uma espécie de portais para outras posições no espaço e também no tempo, os chamados vulgarmente de buracos de minhoca (wormhole) ou mais tecnicamente: ponte Einstein-Rosen. Não sabemos ainda se esses buracos no tecido do espaço-tempo são reais ou apenas especulações matemáticas, mas os buracos negros também eram apenas especulações e hoje sabemos que eles são objetos cósmicos reais.
Supondo que a ponte Einstein-Rosen exista e que ela permita a passagem de um ser humano (o que é mais uma especulação matemática) este poderia, em princípio, viajar ao futuro ou ao passado.
Alguns físicos argumentam que a viagem ao passado é proibida pela Segunda Lei da Termodinâmica. Essa lei pode ser enunciada de várias formas diferentes e envolve conceitos não muito simples como a Entropia. Mas falando de forma grosseira podemos dizer que é essa lei que apresenta a seta temporal, isto é, uma direção e um sentido para o tempo.
As Leis da Mecânica são perfeitamente reversíveis no tempo, elas exigem que exista um tempo pois sem ele não haveria sentido falar em movimento, mas para a Mecânica o tempo pode ir para frente ou para trás. A equação que descreve o movimento de um pêndulo é a mesma quando ele desce e quando ele sobe. Já na Termodinâmica não é assim, um sistema termodinâmico evolui num único sentido temporal: você está acostumado a ver uma xícara de chá quente esfriar naturalmente. Mas não vê um copo de água fria repentinamente ferver sem uma fonte de calor. A Segunda lei da Termodinâmica proíbe essa transformação afirmando: “O calor sempre vai, de forma natural, dos corpos quentes para os corpos frios”. ou “É proibido que o calor saia de uma fonte fria e vá para uma fonte quente sem a injeção de energia”.
Assim poderíamos dizer que a Segunda Lei da Termodinâmica proíbe a viagem ao passado?
O grande físico austríaco Boltzmann fez uma abordagem diferente da Termodinâmica, introduzindo a Mecânica Estatística. Após essa nova interpretação não podemos mais dizer que é proibido que tal evento ocorra, mas sim que é extramente improvável.
Podemos então afirmar que as viagens ao passado são extremamente improváveis e que exigiria uma quantidade de energia absurda para acontecer, mas afirmar que elas são impossíveis talvez seja um erro.
Paradoxos
O problema de se viajar ao passado são os paradoxos que podem surgir se alguma alteração for feita. Um dos mais famosos é o paradoxo ontológico ou paradoxo “bootstrap”, em que alguma coisa existe sem ter sido efetivamente construído (efeito sem uma causa). Outro também famoso é o paradoxo do avô, em que você viaja ao passado e de alguma forma impede que seus pais se conheçam e dessa forma impede seu próprio nascimento (não há necessidade de matar o seu avô, mas é isso que dá nome ao paradoxo).
Na Ciência um paradoxo é geralmente sinal de que algo na teoria está errado, por isso a Ciência evita os paradoxos, ou tenta solucioná-los quando eles surgem.
A Física teórica geralmente usa duas formas diferentes de solução para evitar os paradoxos da viagem ao passado:
- Negar o paradoxo através da extinção do livre arbítrio;
- Usar uma possível interpretação da mecânica quântica chamada: interpretação dos muitos mundos.
Igor Novikov no excelente artigo: “Pode-se mudar o passado?” Publicado no livro: “O futuro do espaço tempo” (Cia das Letras, página 60) explica de forma brilhante que enxergar um paradoxo é na verdade um erro de lógica. Ele argumenta que o paradoxo só existe se a situação for discutida duas vezes, de duas maneiras diferentes. Na primeira sem a viagem ao passado e na segunda com a viagem que ocasiona uma mudança do primeiro evento. Por exemplo: seus pais se conheceram e depois você nasceu. Ao viajar ao passado e impedir esse encontro você não teria nascido, resultado: criamos um paradoxo pois como você pode ter nascido se seus pais não te conceberam?
Mas do ponto de vista de Novikov você pode até voltar ao passado mas não teria como impedir o encontro deles, pois o fato: “você ter nascido” já ocorreu, ainda que seja no futuro e ter ido ao passado não é uma “volta” porque você já estaria no passado desde a primeira vez, mesmo sem ter nascido ainda. Difícil de entender? Sim bastante, mas essa dificuldade é devida à complexidade das vontades humanas ao livre-arbítrio.
Vamos tentar com um exemplo mais fácil, sem a interação de um ser pensante: imagine que um cometa do futuro tenha entrado em um buraco de minhoca e aparecido no passado no planeta Terra e levado os dinossauros à extinção. Agora imagine que nesse ano a NASA nos dê uma terrível notícia: um cometa gigante está em rota de colisão com a Terra (nossa! Já não bastasse essa terrível pandemia). Quando todos já estavam desesperados com o fim do mundo o cometa misteriosamente desaparece. A NASA e outras agências espaciais então detectam estranhas perturbações gravitacionais, indicando a presença de um possível buraco de minhoca ou buraco negro.
Nesse segundo exemplo não há paradoxo, pois a extinção dos dinossauros já aconteceu desde a primeira vez. Por mais difícil que seja aceitar essa visão ela não comete erros de lógica. Mas ela exige duas premissas que fogem do nosso censo comum: A não linearidade do tempo, isto é, o passado não ocorre antes do presente e do futuro. Segundo a física moderna, passado, presente e futuro podem estar acontecendo simultaneamente. Por isso você não surgiu no encontro de seus pais necessariamente antes de ter nascido ( no primeiro exemplo). A segunda premissa é a negação da existência do livre arbítrio: Como o futuro já está acontecendo junto com o presente e também com o passado, as escolhas são meras ilusões.
Outra saída para evitar o paradoxo da alteração do passado consiste em uma hipótese ainda mais difícil de ser aceita: A possibilidade da existência de outros mundos (uma espécie de multiversos, ou universos paralelos, mas esses nomes são usados para outras hipóteses físicas).
Em 1957 Hugh Everett III em sua tese de doutorado defende a IMM Interpretação de muitos mundos para a Física Quântica o que significa dizer , ainda que de uma forma sem muito rigor matemático, que para cada possibilidade de escolha que ocorre no universo, todas as possibilidades são verificadas, mas em diferentes mundos. Por exemplo: Um átomo de urânio é radioativo e se desintegrará emitindo uma partícula alfa e se transformando no elemento químico chamado tório. Na interpretação mais aceita da mecânica quântica (Interpretação de Copenhague) afirmasse que não é possível saber quando ocorrerá essa desintegração, podemos apenas calcular a probabilidade dela acontecer ou não. É por isso que trabalhamos com o conceito de meia vida para os elementos radioativos. Na interpretação de muitos mundos poderíamos afirmar que se em cada instante há 50% de chance do átomo desintegrar ou não, então ele estará desintegrando a todo instante porém em algum outro mundo.
Outro exemplo mais clássico é o lançamento de uma moeda. Se jogarmos uma moeda para cima e ao apanharmos ela deu cara, isso significa que um outro mundo idêntico ao nosso foi criado e nesse mundo o resultado foi coroa. Caso tivéssemos jogado um dado, seis novos mundos idênticos teriam sido criados.
Ao retornar ao passado, podemos alterar algum evento, mas um paradoxo não será criado porque essa volta ao passado ocorrerá em um outro mundo. No exemplo de impedir o encontro dos pais sua versão existirá, mas o evento que te deu origem não ocorrerá pois você não nascerá, já que nasceu em outro mundo e não poderá mais voltar a ele.
Dark e os paradoxos
Alerta de Spoiler 1: Caso você não tenha assistido a nenhum episódio e deseja assistir sem spoiler, pare de ler e volte após ter assistido pelo menos até o episódio 7 da primeira temporada.
Uma das coisas que mais gostei em Dark é o fato deles evitarem o paradoxo do avô através da negação do livre arbítrio. Não há paradoxo porque o desaparecimento de Mikkel Nielsen no ano de 2019 o leva para 1986 e lá ele cresce como Michael Kahnwald que então conhece Hannah e com ela se casa. Eles então tem um filho Jonas, que em 2019 é bem mais velho do que Mikkel (seu futuro pai). Não houve uma alteração do passado, Mikkel não impediu que Michael conhecesse Hannah, ele é o próprio Michael, eles são a mesma pessoa.
Alerta de Spoiler 2: Caso você não tenha assistido a nenhum episódio e deseja assistir sem spoiler, pare de ler e volte após ter assistido pelo menos a primeira e segunda temporada.
O tempo todo o paradoxo do avô é evitado através da primeira possibilidade explicada acima, as viagens no tempo geram um looping nas linhas de tempo.
Mas no último episódio da segunda temporada a série faz uso da segunda versão da fuga do paradoxo, usa-se a Interpretação dos muitos mundos. Uma outra Martha surge e ela deixa claro que não é a Martha “deles”: quando Jonas pergunta de que ano ela veio ela responde, não é “de quando”, mas “de onde”.
Já no início da terceira temporada Martha (que agora tem o cabelo mais escuro) deixa claro que veio de outro mundo.
Como parei no segundo episódio da terceira temporada vou parar por aqui as análises físicas e começar a falar sobre o que eu acho da série a partir de comparações com outras séries, mas isso em outro post pois esse já ficou muito longo.
Observações chatas:
Como disse antes não gosto de apontar falhas científicas ou “erros” conceituais em obras artísticas pois não há nenhuma obrigação de fidelidade, mas apenas para tentar evitar esse tipo de comentário e por uma necessidade didática (para que alunos não tenham uma compreensão errada de algumas coisas) vão algumas observações:
O bóson de Higgs (ou partícula de Deus como foi chamada por motivos comerciais pela mídia) não tem nada a ver com viagem no tempo, ele está relacionado com o campo de Higgs, que seria o responsável pela massa dos corpos.
Ele também não pode ser detectado em reatores atômicos, mas sim em aceleradores de partículas. E não é qualquer acelerador, demorou-se mais de 40 anos para se construir um acelerador capaz de produzir essa partícula (o LHC).
O bóson de Higgs é uma partícula subatômica portanto ela é invisível a olho nú.
Em um determinado episódio um personagem está sofrendo uma autópsia e o legista afirma que há um excesso de radioatividade no corpo da pessoa, que talvez ela tenha sofrido uma exagerada exposição a raio-X. O raio X não é emissão radioativa (apesar de ser radiação ionizante) e uma pessoa que foi exposta a radioatividade não se torna radioativa. A emissão de radioatividade só aconteceria se ela se contaminar ingerindo ou encostando em material radiativo que então grude no corpo dela.