Certo dia ouvi de um amigo, professor de história, uma questão interessante que ele coloca aos seus alunos, vou adaptá-la aos alunos de engenharia, mas poderia servir a qualquer outra área das ciências. Suponha que você é recém formado e trabalhe em um empresa ganhanhando R$ 4.000,00 por mês. Uma segunda empresa oferece a você R$ 7.000,00. Você trocaria de emprego?
Alguns já devem ter dito sim logo de cara, mas quando a esmola é demais o cego desconfia não é mesmo? Então você se lembra de perguntar quantas horas de trabalho você terá na segunda empresa, e a resposta é: a mesma quantidade de horas.
Isso é bom, mas você agora está esperto e resolve perguntar sobre os outros benefícios: seguro saúde? Vale refeição? Vale transporte? Plano de carreira? As respostas são: os mesmos benefícios e em alguns casos até melhor.
Bem! Depois de todas essas perguntas e respostas você já está apto a decidir correto?
Vai trocar de empresa, pois a oportunidade é excelente.
Mas o mestre Lisânias (meu amigo professor de história) nos mostra que a pergunta mais importante, segundo Carl Marx, não foi feita:
O que eu vou produzir?
Será essa uma pergunta realmente importante?
Caso você tenha se lembrado de perguntar, ou tenha pesquisado sobre a empresa, essa seria uma questão que nortearia sua decisão?
Suponha que a empresa que você trabalha atualmente produza carrinhos de bebês e a segunda revólveres, faz diferença?
A resposta a essa pergunta não é única:
a) Sim, eu perguntei, e não me importo com isso.
b) Sim, eu perguntei, e me importo com isso, não vou aceitar a proposta.
c) Não, não perguntei. Nem tinha pensado nisso.
Existem diversas outras respostas, mas vamos ficar só com essas. Se você respondeu a resposta c, você é o que Marx chamaria de alienado.
Não se sinta ofendido, na sociedade atual (e nas anteriores também) os trabalhadores (que agora passam a ser chamados de colaboradores) são em sua maioria, pelo menos no ocidente, alienados.
A moeda, o capital, o dinheiro é o que importa. Afinal não estou fazendo mal a ninguém. Estou ganhando meu dinheiro com meu trabalho honesto (colaborando). Não é ilegal produzir armas, portanto alguém deve fazê-las não é mesmo?
A questão que estou tentando levantar aqui não é se é certo ou errado fazer armas. Pergunto se você percebeu que é uma peça nessa máquina. Se o que você produz não faz diferença, ou se isso ao menos não lhe incomoda, a ponto de você nem se quer pensar sobre, então isso é alienação e você está fazendo parte de uma massa de manobra. Você pode estar alimentando um sistema que você mesmo condena.
Esse é só um exemplo. Mas pode ser expandido para muitos outros casos. A segunda empresa pode ser poluidora, totalmente descompromissada com uma produção mais limpa, geradora de resíduos tóxicos, etc.
E não precisamos ficar presos ao exemplo do emprego, isso vale para o filme que você assiste, para a novela que você gosta, para o email aparentemente inocente que você encaminha, etc.
Vivemos muitas vezes uma ilusão de que somos pessoas bem informadas, que lemos jornais, revistas, assistimos telejornais, temos acesso a internet, grupos de discussões, tanta informação. Mas será que refletimos sobre o que estamos lendo, vendo, recebendo, assistindo?
Muitos de nós, por ser da cidade grande e pertencer a uma classe social diferente da grande maioria da população, nos julgamos mais bem informados do que o “povo”. As eleições são um bom exemplo. Quantas vezes reproduzimos o comentário: “o povo vota sem pensar, é enganado facilmente”. Voltando a outro exemplo do Lisânias, um camponês, que lavra sua lavoura, pode ser muito menos alienado do que um cidadão da dita cidade grande. Não porque ele tenha internet ou TV a cabo, mas simplesmente porque ele sabe qual o seu papel no sistema em que ele vive. Ele tem consciência do que faz.
Certa vez fiquei numa pousada na Ilha do Cardoso, o dono era um sujeito muito gente boa, típico caiçara, que gostava de contar “causos”. Ele nos contou de um senhor muito simples que tinha a seguinte filosofia: Nós temos que tocar nossa vida sendo um a menos. O mundo tá cheio de FDP (não preciso traduzir a sigla né?). Nós temos que nos esforçar para ser um a menos. Ele não tinha instrução formal, não deve ter lido Marx, mas não devia ser um alienado.
A engenharia pode iludir facilmente, a tecnologia fascina. É muito importante que você goste do que faz, é essencial, mas a fascinação não pode te cegar. Você vive em sociedade e tem o dever de procurar fazer o melhor para ela, é uma questão ética. A busca do sucesso a qualquer custo, o não saber lidar com o fracasso. É uma armadilha muito perigosa.
Ficamos escandalizados com o nazismo e a morte de mais de 6 milhões de judeus, negros, homossexuais, deficientes mentais, ciganos. Pensamos: Como foi possível tamanha barbárie? Será que ninguém percebeu o que estava acontecendo? O que era pregado? A eugenia: a supremacia da raça ariana.
Isso tudo aconteceu a não mais de 80 anos. Será que a nossa sociedade é tão diferente assim. Será que o sucesso a qualquer preço, American way of life (Estilo americano de vida) não é algo parecido com isso? Ser um looser (perdedor) é uma das maiores ofensas que a gente vê nos filmes americanos. Os livros de auto ajuda tentam nos passar uma mensagem positiva, acredite e você conseguirá, tudo só depende de você.
As pessoas esqueceram que o fracasso faz parte do aprendizado. Que o erro é importante. Que a frustração é importante. Lembro-me que uma amiga psicóloga contou que estava com seu filhinho de três anos em uma festa junina, brincando na pescaria. Seu filho não conseguiu o premio e começou a chorar, a moça da barraquinha ficou com dó e ofereceu um premio de consolação. Ela não aceitou, disse que o filho precisava aprender que não se ganha sempre.
Bom, acho que eu me alonguei demais nos pensamentos, Me desculpem por tocar em assuntos tão importantes de uma forma tão tosca e sem profundidade. Eu pretendia apenas alertar aos jovens engenheiros, cientistas, e tecnólogos que a ética não é a matéria chata obrigatória do currículo, que a história tem muito a nos ensinar. As profissões ligadas às áreas de tecnologia provocam profundas transformações na sociedade. Devemos ficar atentos a que tipo de transformação estamos inseridos.