Já faz tempo. Estou atrasado. Mas o assunto é tão importante que fiquei adiando para tentar fazer um grande Post. Mas o tempo foi passando e agora estou mais preocupado em comentar o ocorrido antes que ele fique muito ultrapassado.
No post Cérebro Eletrônico comentei que é difícil perceber que podemos estar imersos numa profunda revolução. Eu estava me referindo aos avanços da inteligência artificial. Agora o assunto é ainda mais intrigante e polêmico: A possibilidade de obtenção de uma vida artificial.
A definição do que é vida é algo bem complexo e os próprios biólogos não chegaram a um consenso. Um vírus é um bom exemplo de como é difícil essa definição. Ele preenche vários critérios para ser chamado de vivo, mas não possui um DNA próprio, portanto não há consenso se ele é ou não um ser vivo.
Após a descoberta da estrutura do DNA, feita por James Watson e por Francis Crick em 7 de março de 1953, a biologia, movida pela engenharia genética, passou a ocupar o posto que antes era da física: A ciência dos avanços extraordinários e também na categoria inventos “perigosos”, como as armas nucleares. A síndrome de frankeinstein (um invento que se volta contra seu criador) está por trás desses medos. Imagine um novo ser vivo, criado totalmente pelo homem, escapando do seu controle e se espalhando pela natureza.
Apesar de não ser possível descartar essa catástrofe, não consigo ficar realmente muito preocupado com isso. Perigos há em toda tecnologia, seja ela nova ou velha e devemos sempre ficar atentos a esses perigos, por menor que seja a probabilidade. O enfoque que quero dar a obtenção da célula sintética (que ainda está longe de ser a criação de vida artificial) é outro.
Façamos um pequeno retrospecto de avanços em áreas parecidas:
25 de julho de 1978 – Nasce o primeiro bebê de proveta do mundo, uma fertilização “in vitro”.
Fins dos anos noventa – Polêmica com os alimentos geneticamente modificados.
5 de julho de 1996 – É feita a primeira clonagem de um mamífero: a ovelha Dolly.
Inicio do século XXI – Polêmicas sobre pesquisas com células tronco.
Maio de 2010 – Criação da célula sintética.
O biólogo e empresário Craig Venter e sua equipe anunciaram a criação da primeira célula sintética, uma bactéria se reproduziu a partir do DNA de outra bactéria, o qual foi seqüenciado por um computador e montado, pedaço por pedaço, em laboratório.
Para entender o que foi feito precisamos primeiro esclarecer algumas coisas básicas. No filme “Jurassic park”, os dinossauros são criados a partir da obtenção de seu DNA. Segundo o filme, essa obtenção se deu através do sangue sugado por um inseto que ficou aprisionado em um fóssil. Apesar de o filme ser uma ficção e por isso não ter necessariamente que corresponder à realidade, um erro conceitual grave acabou sendo veiculado, o de que o DNA é a matéria prima para se fazer um ser vivo. É como se tendo o DNA de qualquer animal eu pudesse fazê-lo em laboratório.
O Paleontólogo e biólogo evolucionista, Stephen Jay Gould, escreve um artigo no livro: “AS COISAS SÃO ASSIM – Pequeno repertório científico do mundo que nos cerca” e explica muito bem que tipo de erro é esse. O DNA é apenas um código genético, uma instrução de COMO fazer um animal e não a matéria prima. É uma espécie de manual, na analogia de Gould: é como um manual de como fazer um carro, ter o manual não garante que possamos fazê-lo. São necessários vários itens, como: máquinas, aço, vidro, plástico, eletrônica, etc. Além disso é preciso da mão de obra qualificada. A mesma idéia pode ser pensada com relação ao DNA, ele é a instrução para a construção de proteínas e são essas as grandes responsáveis pela “construção” do ser vivo.
Todos os seres vivos são feitos de células e essas se reproduzem constantemente (há exceções, como os neurônios e as células reprodutivas femininas). Nessa reprodução duas células idênticas a original são criadas e o DNA é o responsável pela fidelidade da cópia. Imaginem que após tomar um sol excessivo na praia, algumas células da sua pele morrem e você começa a descascar. Evidentemente as células devem ser substituídas por células idênticas às anteriores, não seria nada agradável se as células do nariz fossem substituídas por células do pé. Já imaginou um pé nascendo no nariz? Brincadeiras a parte, usando manipulação genética cientistas já conseguiram produzir em laboratório aberrações como essa (apesar de a intenção ser a melhor possível) veja nesse link: http://www.comciencia.br/reportagens/2004/10/08.shtml uma orelha humana que “nasceu” nas costas de um camundongo.
Podemos agora voltar à criação da célula sintética. Venter e sua equipe, utilizaram uma determinada bactéria (Mycoplasma capricolum) e retiraram completamente seu DNA. Um novo DNA foi obtido de outra bactéria (Mycoplasma mycoides), e inteiramente montado no computador, com algumas modificações. Dessa forma pode-se diferenciar o código genético sintético do natural. Obtido esse novo código o grande desafio seria implantar esse DNA em uma célula e verificar se ela poderia se reproduzir. Será que um DNA recriado por um programa de computador poderia dar origem a vida?
A resposta foi positiva. Após a implantação do DNA sintético na bactéria Mycoplasma capricolum da qual havia sido retirado o DNA, a bactéria se reproduziu normalmente como se fosse a mycoides . Não podemos dizer que um ser vivo artificial foi criado, pois foi usada uma célula viva que já existia, mas como o código genético foi modificado temos uma célula sintética, isto é, artificialmente construída, uma vez que não há na natureza nenhum ser vivo com um código genético idêntico a esse.
A façanha foi incrível e as aplicações podem ser imensas. O objetivo é produzir bactérias que possam ter propriedades desejadas como por exemplo, que se alimentem de óleo e possam ser usadas para limpar os oceanos contaminados por derramamento, ou ainda bactérias que absorvam gases estufas como o CO2, plantas que absorvam energia solar e transformem em eletricidade, bactérias que geram biocombustível e muitas outras funções.
O medo por traz dessas experiências é a produção de um ser vivo cuja ação possa ser maléfica para nós ou para o meio ambiente e que esse ser escape ao nosso controle. Apesar de esse medo ser real, não é muito diferente de armas nucleares caindo em “poder” de terroristas, ou mesmo que elas possam ser usadas por algum país numa eventual guerra. Ou ainda, como já aconteceu, o uso indiscriminado da radioatividade no início do século XX, antes que os efeitos deletérios fossem percebidos, o mesmo aconteceu com o raio-X. O medo de catástrofes como essas não vai impedir que os inventos sejam feitos, nem mesmo a clonagem humana parece estar livre disso, apesar de vários países terem na proibido.
O próximo passo que será tentado pela equipe de Venter é a obtenção de uma célula realmente artificial, isto é, a criação de uma nova forma de vida, feita inteiramente pelo homem. A questão que me parece mais importante nessa façanha é o levantamento da seguinte questão: Não há necessidade de algo sobrenatural para a criação da vida? Podemos ser obra do acaso? Um simples programa de computador é capaz de criar, com base em regras gerais da física e da química, instruções para que uma nova forma de vida surja?
Acredito que um forte argumento para aqueles que não acreditam em Deus possa surgir daí. Evidentemente as entidades religiosas não aceitarão esse argumento. Talvez, inclusive, usem o próprio feito para afirmar que a vida só pode ser criada por um ser inteligente, alegando que há a necessidade de um ser inteligente (nós) para o feito.
Mas a questão é que apesar de inteligente, não estamos além da natureza, não somos sobrenaturais, não somos deuses.
Assim como aconteceu com o bebê de proveta e com a ovelha Dolly, um grande alarde surge no momento da notícia. “O homem está brincando de Deus!” Decorrido certo espaço de tempo, os procedimentos tornam-se mais freqüentes, ou até mesmo corriqueiros, como a fertilização “in vitro”, que nos dias de hoje se tornou uma prática mais que corriqueira, mas que foi alvo de muitos protestos e debates na época do primeiro bebê de proveta.
Provavelmente acontecerá o mesmo com o feito de Craig Venter, mesmo que ele consiga criar realmente uma vida artificial. A tecnologia parece um trator que sai atropelando tudo que aparece pela frente. Como se não desse importância aos protestos, oposições e receios.
A rapidez com a qual as descobertas vão sendo feitas, torna difícil, se não impossível, a avaliação por parte da sociedade sobre o impacto que elas podem gerar. Além disso as descobertas geralmente são universais, podem ser usadas por todos os países (pelo menos em princípio), mas cada país possui uma legislação diferente, costumes diferentes, nível de educação diferente. Não dá para se esperar que haja um consenso. Mesmo em questões aparentemente mais simples, como desenvolver ou não uma arma de destruição em massa.
Dessa forma a célula sintética, e mesmo a obtenção de uma vida completamente artificial, passará pela sociedade como mais uma conquista tecnológica, e não provocará um grande debate na sociedade. Perde-se mais uma vez a chance de crescimento intelectual, de aprendizado. Os religiosos se fecham no seu obscurantismo, queixando-se da pretensão humana, enquanto os cientistas e tecnólogos continuam embarcando nessa locomotiva sem freio.
O que ganharíamos com um grande debate? A certeza de que Deus existe? A certeza de que a religião é dispensável? Acredito que nem uma coisa nem outra. Mas acho que começaríamos a nos importar de verdade em saber o rumo que queremos tomar. Não sou a favor de se tentar por um freio na tecnologia, mas não me agrada não saber para onde essa locomotiva vai. Acredito que no mínimo conseguiríamos aprender bastante. Falo de um aprendizado conjunto, significativo e em larga escala.
Como cientista me sinto muitas vezes isolado num mundo onde a grande maioria se fecha para o que a ciência tem a mostrar. Mas não faço coro com alguns arrogantes que julgam que o progresso é inevitável e que só a ciência é que detém o saber.
A questão é como mudar isso? Como não transformar a discussão religião x ciência em um jogo de adversários?
Gostaria de ter essa resposta, não tenho ideia de como fazer. Sei apenas, que não funciona do jeito que está sendo feito. A cada nova descoberta a mídia faz algumas matérias, “explica” para o público leigo o que foi feito, o público reage com indignação, mas a grande maioria não tem a menor ideia do que foi feito. E o assunto desaparece (afinal de contas o LHC criou ou não buracos negros que poderiam destruir o mundo?).
No fundo o objetivo da grande mídia não é informar, mas vender uma matéria. Ocupar o espaço nobre que o patrocinador está bancando.
Por que um evento mundial como uma copa do mundo ou uma olimpíada não pode acontecer na área da ciência? Não no sentido de competição, mas me refiro ao alcance, ao investimento feito. Lembro-me que na minha infância, o voleibol era um esporte desconhecido. Quase ninguém conhecia as regras, quase não havia torcida. Algo aconteceu que transformou essa realidade e hoje ele já é o segundo esporte nacional. Por que o mesmo não pode acontecer com a ciência?
Quem sabe um dia as manchetes: “Brincando de Deus” possam ser trocadas por: “Agindo como seres humanos”.